Dias
e Noites, exposição/intervenção de Adriana Amaral, pode ser guiada
por dois vetores poéticos de grande potência. Inicialmente, o mais claro é o
que compila a memória pessoal, afetiva e familiar da artista de Ribeirão Preto
nessa residência algo comum e confortável no Jardim Sumaré, zona nobre da
cidade do interior de São Paulo. Outro, menos óbvio, é aquele que indica o
quanto o desenvolvimento urbano contamina e modifica, por vezes de modo
indelével, as microhistórias e biografias - menores'.
Um dos traços mais evocativos do tempo nesse lugar tão particular para a obra de Amaral são os numerosos indícios do estado semivivo da casa, ora pendendo para o abandono, ora enfatizando o quão vital já fora tal construção. Nessa condição intermediária, as folhas das árvores caídas que se movem pouco com o vento, as fissuras a rachar superfícies anteriormente de tinta impecável, as manchas que desenham as formas dos antigos objetos que povoavam todo o conjunto criam um arcabouço que faz das reminiscências quase algo físico, a nos inquietar e nos provocar durante todo o período em que permanecemos na casa.
A interdição de certos
ambientes, como a garagem _ o que será que ela contém agora? _ e o escritório
paterno, cujo entrever é permitido, mas de relance _ o acúmulo de objetos
banais do local chama a atenção, mas nem tanto quanto o calendário congelado em
uma data-chave _ ajudam a compor um certo mal-estar neste realce de situações
de difíceis determinações e leituras. "Três lascas de tempo. Meu próprio tempo
em lascas: um pedaço de memória, essa coisa não escrita que tento ler; um
pedaço de presente, aqui, sob meus olhos, sobre a página branca; um pedaço de
desejo, a carta a ser escrita, mas para quem?"1, interroga Georges
Didi-Huberman.
A condição urbana onde está a
antiga residência da família da artista, datada de 1963, também é fundamental
para que a obra se manifeste com tal pungência. Na quente e pouco arborizada
Ribeirão Preto, o número 820 da rua Visconde de Abaeté tem à frente uma praça
de elogiados paisagismo e linhas, mesmo que o poder municipal a deixe num
estado pouco vivaz. A praça Engenheiro Armindo Paione, mais conhecida como
praça Brasília, tem alguns passeios de cachorros e donos em horas mais
matutinas, porém, em grande parte do dia, permanece sem visitantes, que deixam
de frequentar um logradouro de bela formação _ a pequena elevação onde está
instalada gera um desenho interessante para o conjunto, que hoje não possui
mais placa de identificação, nem fonte nem playground, tampouco pequenas obras
de arte públicas que já estiveram por ali. De todo modo, ipês, palmeiras,
goiabeiras, paus-brasil e outras árvores ainda são fonte contínua da
movimentação de pássaros de diversos portes, sempre com presenças ruidosas a
ecoar pelos quarteirões do bairro de classe média alta.
No
espaço expositivo
Dias
e Noites pode ser considerado um grande site specific, que relaciona dados biográficos da artista com sua
investigação visual. Para um entendimento mais completo, é necessário vê-lo em
conjunto, tal qual um relógio _ o exemplo é bom por se relacionar à uma
instalação presente na mostra e que será¡ comentada mais à frente _ que funciona
com precisão pela sincronia entre suas partes menores formadoras. No entanto,
isso não impede que haja leituras mais detidas sobre trabalhos, de forma mais
individualizada.
Assim, é marcante que a
utilização de imagens e registros, fotográficos e audiovisuais, realizados num
âmbito familiar e doméstico e, agora reapropriados e potencializados pela
artista, seja uma estratégia certeira de Amaral. Então, o filme super-8 que é
exibido na parte superior da residência desfila uma série de imagens não apenas
nostálgicas do cotidiano bastante corriqueiro dos familiares da artista. A
artista frisa em seu texto de introdução ao projeto que não queria que
acontecesse o mesmo que ocorrera com as casas de avós e tia-avó, hoje quase sem
nenhum registro. No filme, tais locais são vistos como cenário de fundo, lócus
da harmonia de parentes e cujos volumes e formas não são mais que rastros algo
borrados. " É por isso que a fotografia anônima poderá ser deslocada das
lixeiras da história para as paredes do museu" 2, alerta o teórico
François Soulages, pouco antes de comentar a obra de Christian Boltanski,
nome-chave da contemporaneidade em sua singular investigação sobre o passado.
Na instalação que fica no pavimento inferior e traz a cama hospitalar da mãe da
artista, remetendo ao período em que a senhora morara naquela dependência, o
conjunto de fotografias que compõe o ambiente também cria um deslocamento
temporal, uma zona em que um passeio num Fusca novinho e um final de semana na
praia levam a outros dias. "[...] A máquina fotográfica é, neste sentido, um
instrumento de projeção e um elemento do teatro elaborado pela família para
convencer-se que é una e indivisível"3, sublinha Rosalind Krauss.
Também é hábil a disposição da
artista em justapor registros de elementos algo ordeiros e disciplinados da
rotina caseira, como a coleção de 43 pratos de distintas e exóticas origens que
pairavam na sala de jantar, e coisas hoje encaradas com alguma estranheza, como
a pintura a retratar a matriarca, tela anteriormente desprezada pela personagem
por alegada parca fidelidade à figura real. Vista conjuntamente com outros
elementos 'gastos' da casa, como malas e espelhos, acentuam os dados
anacrônicos que constituem boa porção de qualquer vivência familiar.
Contudo, nesse sentido, a obra
mais robusta a atestar o caráter inexorável do tempo é Menos um, menos um, menos um, instalação que se vale do som do andar
determinado e regular de um relógio, em chave amplificada e que entinta,
impregna de mal-estar os móveis de cerejeira da biblioteca da residência. Não é
sempre que a sensação de finitude, fragilidade e precariedade toma um ambiente
por inteiro. Parece frisar também que a cidade lá¡ fora, hoje uma metrópole
regional onde shoppings de grande escala tomaram o lugar de colégios de
tradição, onde carros importados desfilam ruidosamente seus cavalos a perturbar
fauna e flora menos ostensivas, onde praças antes povoadas hoje sedimentam
apenas rastros e indícios de uma urbanidade que já¡ foi mais afável a seus
moradores, é um outro espaço.
Mario Gioia
1. DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Revista Serrote,
Instituto Moreira Salles, São Paulo, 2013, n. 13, p. 100
2. SOULAGES, François. Estática da Fotografia - Perda e Permanência. São Paulo, Senac SP, 2010, p. 180
3. KRAUSS,
Rosalind. O Fotográfico. Barcelona, Gustavo
Gili, 2012, p. 221